quinta-feira, 20 de março de 2014

Todas as almas perdidas

Parte 1 – A ladra de livros

Molching, Alemanha. 1939.

Era noite e fazia muito frio quando a garota de 9 anos de idade desceu pela rua Himmel em direção ao casarão no fim daquela alameda. A menina tomava o máximo de cuidado para não ser vista, por isso mantinha-se rente às sombras que se formavam nas laterais das casas adjacentes. Andava apressada e de um jeito estranho, pois guardava escondido dentro do seu casaco de inverno surrado, um embrulho.

Liesel Meminger sabia que não era apenas um pacote. Ali havia mais um livro para sua peculiar coleção. Uma história como a sua, talvez. Perdida. Esquecida. A garota gostava de colecionar coisas que a faziam lembrar quem ela era.

A pequena órfã de pai e mãe tinha perdido também um irmão mais novo antes de ser adotada por desconhecidos. Liesel tinha poucos amigos, sendo que entre eles, havia um que nem em pensamento podia dizer seu nome, afinal a segunda guerra se travava por todo lado que o olhar preocupado da menina que roubava livros visava.

A pequena ladra roubava, não para sustentar um vício seu – um pecado, mas para não se sentir sozinha. Juntava histórias parecidas com a sua na pequena biblioteca que conseguiu improvisar no porão daquela casa. A biblioteca das almas perdidas como a dela.

Liesel via os personagens que existiam nos livros perambulando pelos corredores das poucas seções improvisadas de livros empilhados sobre as estantes de madeira velha. Nada ali era neutro. Tudo afirmava seu ponto de vista. Às vezes, a ladra de livros conversava com eles. Às vezes, só passava apressada visando encontrar um lugar que pudesse apreciar suas novas aquisições.

- Oi, Sr. Gray. – disse fitando a figura do quadro, mesmo sabendo que o mesmo era inanimado, e se sentando no chão sujo com as costas voltadas para a parede de pedra cinzenta onde o retrato de um Dorian Gray envelhecido estava preso.

A roubadora de estórias virava cada página encadernada do livro preso em suas mãos com avidez. Lia “O mágico de Oz”. E quando finalmente o devorou por completo, se sentiu tentada a fazer a pergunta que matutou em sua pequena caixa encefálica durante todo o conto para o homem de lata que encarava o nada em sua frente como se estivesse vendo o que ninguém mais via, sentado num canto oposto. Mas não o fez.

Parte 2 – O Retrato Na Parede

Pelos olhos pintados numa tela de tecido encardido, ele observava o ir e vir do mundo. Ele não se movia. Queria, mas era incapaz. Aprisionado numa pintura, o espírito de Dorian Gray viu os anos se passarem. E ele sentia o peso do envelhecer em cada canto de sua moldura.

A tinta de sua pele ficara desgastada e sua imagem tampouco era a mesma de quando fora criada. Havia, literalmente, envelhecido. Começara como o retrato de um belo jovem de cabelos loiros e olhos azuis, e agora não passava da face de um velho enrugado e carcomido.

Ele lembrava-se de quando possuía corpo. Corpo que agora era um eterno rapagão, belo e vivaz, porém repleto da mais podre escuridão dos humanos. Estivera assim, desde que abandonara parte de si para trás naquele quadro: sua alma.

O retrato, aliás, encontrava-se agora na parede de uma biblioteca. Na verdade, o lugar constituía-se apenas um conjunto de livros empilhados num porão escuro e apertado. As paredes e o chão estavam empoeirados e a pouca luz que cintilava no lugar vinha de uma brecha debaixo da porta.

Mas ele sabia que aquela biblioteca tinha certa grandeza. Na imaginação de uma garotinha um tanto quanto especial. Ela guardava demasiados tesouros, cada um escondido na página de um livro.

E lá vinha ela, sorrateira. Empurrou a porta com cuidado e entrou com seus passinhos gatunos, nas pontas dos pés. Carregava um livro em uma mão e uma vela na outra. Ao entrar, fez sinal para que todos mantivessem silêncio. Pousou a vela no chão com um sorriso no rosto e então olhou em volta com um brilho no olhar.

- Eu trouxe um amigo novo – sussurrou ela, indicando o livro em suas mãos. – Vou apresentar pra vocês.

A garota puxou todos os livros que possuía para perto de si, sentou-se num canto próximo ao retrato e começou a ler baixinho para todos os amigos que lhe cercavam.

O velho no retrato tentou sorrir para ela. Não conseguiu.

Ele queria, ao menos uma vez, retribuir o carinho que a garotinha lhe dava, ainda que ele fosse uma alma para sempre amaldiçoada.

Parte 3 – Vale à pena ter um coração?

"Por que dói tanto?
Será que valeu à pena tê-lo pedido como desejo ao Mágico de Oz?
Por que será que me sinto arrependido de ter sonhado em ter um coração?
Talvez tenha me enganado...
Queria poder chorar, mas não posso...
Estou me sentindo deprimido?
Ou apenas enferrujado?
Culpa do tempo ou das lágrimas que nunca descem para aliviar a pressão que machuca meu peito de aço?"

Sentado, num canto escuro, estava um homem de lata introspectivo a questionar o sentido da sua existência. Compenetrado com suas ideias de sentidos e incertezas.A sua frente, a garota de cabelos loiros, muito parecida com outra que conhecera tempos atrás antes de ter um coração, chamada Doroty, estava lendo sua estória escrita num papel amarelado e um tanto dobrado.

A garota sentada ao redor de livros de contos e fantasias lia sobre aquilo que ele vivenciara. Conhecia todas as passagens de cor. Mas talvez, não estivesse gostando de relembrar os passos que deu até o momento presente.

“De que adiantava também fazer caso?” pensou e se deixou estar.

Não julgava a ladra de livros por ter roubado sua estória e expô-la a todos os presentes naquele minúsculo ambiente. Sabia que a garota apenas queria que ele se sentisse bem-quisto, numa família. Não sabia ao certo se era isso...

Viu as chamas da única vela da garota se extinguir conforme o livro chegava ao fim. Era hora dela voltar. Ele seria abandonado de novo... Talvez amanhã se sentisse melhor, se o amanhã existisse. Talvez algum dia...

Viu a garota se despedir, abrir a porta e sair mundo afora.
Não se sentia amado. Não se sentia odiado. Não sabia se sentia alguma coisa, ou tudo. Sabia que sentir doía. E só.

Parte 4 – O Incêndio

Houve um bombardeamento. Liesel sabia disso. Ela ouvira o retumbar das bombas enquanto estava escondida num porão, sentira o chão vibrar com o impacto.

E agora, diante de seus olhos horrorizados, ela via uma rua destruída. Ela via os corpos de todos que amava inertes, estirados no chão. Via o esquadrão de resgate correr para apagar as chamas que ameaçavam se espalhar pelas ruas. As construções haviam desabado com tremenda facilidade.

De tudo que Liesel conhecia, a única coisa que restava viva era ela mesma.

As pernas bambearam e ela caiu de joelhos no chão, desolada. As respiração estava ofegante e lágrimas rolavam por seu rosto descontroladamente. Ela havia perdido todos! Todos os seus amigos, a sua família. Todos haviam partido. Restava apenas ela. 

A garotinha queria desaparecer. Queria gritar! Queria nunca mais se levantar do chão, mas então um pensamento lampejou pela sua cabeça e ela se lembrou que não estava sozinha. Ainda havia esperança! Ainda havia amigos!

A biblioteca no porão!

Ela se virou para correr em direção ao casarão. Havia deixado seus livros lá! Precisava salvá-los. Ela era a única pessoa com quem eles podiam contar. Estava prestes a dar seu primeiro passo, quando alguém lhe barrou.

- Garota – disse um guarda, o mesmo que havia lhe tirado do porão havia poucos minutos. – O fogo está se espalhando! Você não pode ir pra lá.

- O quê...? – os olhos de Liesel fitaram a casa e confirmaram o que o guarda dissera.

O fogo se alastrava pela rua inteira com os escombros em chamas. Era tão fácil para o fogo destruir algo tão forte como o cimento, queimar algo tão vivo quanto a carne. Liesel sabia que era ainda mais fácil ainda com o papel.

Ela não podia ver o porão, mas sabia que as chamas já haviam consumido tudo que lá restava. E entre o fogaréu laranja-avermelhado, ela viu: viu seus últimos amigos no mundo lhe acenando adeus.

Adeus Dorian Gray...

Adeus Homem de Lata...

Ela acenou de volta e eles desapareceram.

Agora sim, ela estava sozinha.


Ewerton Luiz e Rayanne


Nota: No final de 2011, participei de um concurso literário on-line onde semanalmente deveríamos escrever acerca de um tema, e os melhores textos (de no máximo 3 folhas) seguiriam em frente. Não lembro exatamente em qual etapa do concurso eu escrevi esse conto, que na verdade soa mais como uma "fanfic". O tema também me escapou à memória depois de todo esse tempo, mas lembro vagamente que os participantes tinha que escolher 3 livros que mais gostavam e deveriam escrever um conto entrelaçando as histórias de forma coesa e criativa. Como deu para perceber, nesse texto eu escrevi me baseando nas seguintes obras: "O retrato de Dorian Gray" de Oscar Wilde, "A menina que roubava livros" de Markus Zusak e "O mágico de Oz" de L. Frank Baum (os quais estão na minha categoria de livros prediletos). Foi um dos desafios mais legais que fiz durante o concurso. A Rayanne era a minha dupla nesse tema. A mesma acabou vencendo a disputa literária, o que me deixou muito feliz pela grande escritora potencial que ela é. Assim, espero que gostem!